As cidades já foram noturnas. E talvez você ainda lembre de como era.
Ruas movimentadas depois da meia-noite, festas que atravessavam o amanhecer, bares onde o som e a conversa só terminavam com o dia clareando. Era o tempo do improviso. Do encontro sem hora pra acabar. Hoje, muita gente sente: a madrugada sumiu. Ou pior, foi expulsa.
Neste primeiro editorial do ROLÊ, a gente se pergunta: o que aconteceu com a noite das cidades? E quem ainda sustenta o fôlego da cultura noturna?
A cidade que silencia cedo
Por décadas, o coração pulsante das cidades brasileiras batia mais forte quando o sol se escondia. Madrugada era sinônimo de liberdade, de experiências coletivas intensas, de vivência cultural espontânea. Era nesse horário que nasciam os movimentos, os encontros inesperados, os amores relâmpago e os surtos criativos.
Mas hoje, o cenário mudou. A repressão sonora cresceu. As festas independentes enfrentam cada vez mais burocracias, a fiscalização age como sensor de decibéis e vizinho virou gestor de decoro urbano. Até o after tem que acabar com CPF na nota e licença da prefeitura.
“As cidades esqueceram como é pulsar no escuro.”
— trecho do editorial ROLÊ
Quando a noite virou vitrine
Com a ascensão das redes sociais e a estetização da vida, a presença virou conteúdo. A madrugada, que já foi espaço de transgressão e criação, agora corre o risco de ser só cenário pra selfie.
“A madrugada virou vitrine de marca.”
— trecho do editorial ROLÊ
A lógica do engajamento invadiu a pista. Rolês passaram a ser planejados pensando em como vão aparecer no story, e não em como serão vividos. E nesse processo, muita coisa se perdeu: a escuta, o improviso, o erro bonito, o gesto espontâneo que não cabia no feed.
O corpo decorativo e o som contido
O corpo, que antes vibrava em liberdade na pista, agora muitas vezes performa uma presença domésticada. O som, que já era grito e manifesto, hoje precisa seguir as regras do “bom tom” do novo vizinho gourmet.
“A vibe virou filtro. O corpo, decoração.”
— trecho do editorial ROLÊ
Com a gentrificação cultural acelerada, muitos espaços alternativos fecharam. Galpões, sedes de coletivo, ocupações artísticas e bares independentes foram substituídos por locais de consumo controlado, com line genérico, dresscode e patrocínio de bebida cara. A cidade perdeu o improviso. A madrugada, a coragem.
Mas e quem ainda segura a noite?
Calma. Ainda tem gente resistindo. Em raves de floresta, festas de garagem, pistas itinerantes e ocupações culturais, a madrugada continua viva mesmo que mais escondida, mesmo que mais frágil.
“A cultura da noite resiste no improviso.”
— trecho do editorial ROLÊ
São coletivos que criam experiências culturais mesmo sem apoio. DJs que tocam sem line divulgado pra evitar repressão. Pessoas que dançam até o sol nascer em nome de algo maior que um story: a crença de que a noite ainda pode ser espaço de liberdade.